domingo, 8 de maio de 2011

Resenha do livro "Só Garotos", de Patti Smith.

Tinha tudo para ser o lugar comum. Uma cantora de rock que morou anos junto a um fotógrafo-artista, conviveu com alguns ícones do movimento hippie, escrevia poesia e um dia acabou famosa. Esse ex-marido teve então o mesmo fim que diversos artistas nos anos 1980: morreu de aids.

No entanto Patti Smith foi para outro lado, caminhou o suficiente para escrever de um lugar que pouco tinha em comum com os relatos de sua geração. O livro "Só Garotos”, antes de ser uma biografia, é um fluxo de consciência, uma expansão do pensamento e afirmação de uma personalidade nem bonita ao extremo, nem talentosa ao extremo. Apenas uma pessoa que ama outra e descobre a si mesma e vê seu amor se descobrindo. Ela viveu momentos históricos e não se deslumbra ao conta-los. Tratou de Janis Joplin em uma de suas crises de depressão, mas isso tem em seu livro o tamanho que teve em sua vida: um parágrafo.

Com uma escrita suave e levemente poética, o livro tem apenas cinco capítulos divididos em episódios. Lembra uma novela apesar de o foco não ser no cruzamento de vidas. O foco é falar dela e de Robert Maplethorpe, fotógrafo com quem viveu um amor que, de alguma maneira, durou até a morte os separar. Ele se descobriu homossexual durante essa relação, mas nem por isso deixaram de viver o que tinham entre eles. Não era hetero, gay ou fraternal. Era um amor intransitivo.

O relato de Patti mostra a descoberta íntima de dois artistas. Dois indivíduos que se cruzaram e apaixonaram um pelo outro antes de saberem, cada um para si, quem eram. Eram artistas e disso sabiam (ele mais que ela), mas ainda não haviam encontrado a arte que os tornaria célebres. Ela escrevia poesia e desenhava. Ele pintava e fazia colagens. Ela trabalhava para banca-los. Ele ficava em casa, dividido entre criar, ter alguns bicos e fazer programa para conseguir dinheiro. No final, ela se tornaria roqueira e ele fotógrafo. Ela mãe e ele morreria de aids junto ao seu parceiro.

A história começa da primeira palavra que Patti não consegue falar. Ao ver um cisne, queria dizer tudo que vira, tudo que sentira, mas sua mãe lhe ensina uma única palavra: cisne. Patti então trabalha no comércio, faz magistério, trabalha na indústria, tem um filho e entrega para adoção e finalmente vai para Nova York estudar arte. Leva consigo um exemplar de “Iluminations” de Rimbaud, roubado de uma banca de jornal. Em Nova York conhece Robert e outros artistas e vai trabalhar em livrarias. É nesse tempo que sua poesia começa a se encontrar. Engraçada a maneira que Patti descobre ser cantora. Durante um show do The Doors sente desdém por Jim Morrison e pensa: “Posso fazer isso”. Anos mais tarde colocaria flores no seu túmulo que ficava no cemitério Père Lachese, em Paris. (ao lado, foto minha do túmulo de Jim Morrison. "James Douglas Morrison, Kawa Ton Aaimona Eaytoy", inscrição quer dizer "Queime seu demônio interior" em grego antigo ou "Ao espírito divino dentro dele" em grego moderno, segundo o livro "Guia Criativo do Viajante Independente na Europa").

Patti em 1969 vai para Paris realizar o sonho de conhecer a cidade. Viveu um mês vendendo desenhos. Robert, no meio tempo, foi para as estações de trem afastadas do centro de Nova York descobrir sua sexualidade vendendo o corpo. Patti não poupa seus leitores moralmente. Ela relata quem era. Ela mesma nunca foi uma grande exploradora do mundo sexual, diferentemente de Robert, que depois ficaria famoso com suas fotos que tratam justamente do erotismo explicito.

O livro é repleto de citações literárias, mostrando uma erudição precoce da autora. Rimbaud, Gide e Genet aparecem à exaustão. Burroughs e Ginsberg são amigos. Esses autores trazem referencial para Patti que, mesmo sem saber de fato quem era, se apoiou neles para continuar seu caminho de maneira, apesar dos percalços, estoica.

O que mais impressiona em “Só Garotos” é a honestidade de Patti. A gonorreia que contraiu de Robert, o fato de não ser bela ou talentosa ao extremo e de não gostar de algumas rodas de artistas de Nova York aparecem no texto. Apesar de viver a turbulência dos anos 1960 e começo dos 70, não se envolvia muito com política nem gostava tanto. Não era das maiores fãs dos hippies apesar de ela mesma poder ser tratada como uma. É um relato que, apesar de ter o pano de fundo do momento cultural e histórico em que passou, poderia ter ocorrido em qualquer momento. A cena artística se resume a dois ou três bares e pontos de encontro, cada artista maior tem seu séquito e os iniciantes buscam se encontrar nesse meio. Seria possível acontecer nos anos 2010.

O livro é cativante, daqueles que te fazem acordar uma hora mais cedo que o normal para ler um pouco. A edição da Companhia das Letras tem páginas bege e textura agradável ao toque. A capa é bonita. Uma foto de Patti e Robert com um fundo prateado. A leitura não cansa e se adapta a qualquer ambiente: dentro do ônibus, em casa, num café ou no bar. Uma leitura que mexe com quem lê. Inspira aqueles que têm algo para mostrar para o mundo, seja artístico, profissional ou político. Recomendo fortemente a leitura.